leia em: http://cee.fiocruz.br/?q=node/547
A
proposta de Reforma da Previdência (PEC nº 287) exclui os segmentos mais
vulneráveis da população da proteção previdenciária e, fundamentada em
pressupostos discutíveis, anuncia um caos a ser produzido pelo próprio governo.
A análise é da socióloga Maria Lucia Werneck Vianna, professora associada
aposentada do Instituto de Economia da UFRJ, que realizou a conferência Reforma
da Previdência: contexto atual, pós-verdade e catástrofe, da série Futuros do
Brasil, realizada pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, em 6/4/2017.
“Essa reforma é incoerente. Como vários analistas têm mostrado, ela não
vai operar milagres nas contas públicas e nem se destina a isso. Como também já
foi explicitado, o que importa é restaurar a confiança do mercado. Querem
resolver jogando gente na pobreza. A economia, assim, vai para o brejo”,
observa.
Segundo
Maria Lúcia, a Seguridade Social vem sendo progressivamente desmontada desde
1990, com a aprovação das leis orgânicas da Saúde (Leis 8.080 e 8.142/1990); da
Previdência (1991) e da Assistência (1993) pelo Congresso Nacional. “Cada área
foi para um ministério ou um órgão específico. As receitas deixaram de ser
receitas de Seguridade e, em uma prática respaldada pela legislação
infraconstitucional, passaram a ser [separadamente] receitas de Previdência, de
Saúde e de Assistência”, lembra a socióloga, que é doutora em Ciência Política
pelo Iuperj/Uerj.
No caso
da Previdência, explicou, o retrocesso foi institucionalizado e agravado pela
legislação que estabeleceu que somente as contribuições incidentes sobre
salário e folha seriam arrecadas pelo INSS, o que condiciona a receita ao
cenário econômico. “Se o desemprego aumenta e a informalidade prevalece, as
receitas despencam e, aí, efetivamente, aparece o déficit”, diz. “É nesse
desmonte, acrescido dos mecanismos redutores de receitas, que se encontra esse
fetiche do “rombo” da previdência. Um fato alternativo que atingiu grandes proporções”,
diz Maria Lúcia, destacando que, no entanto, não é o caso de dizermos que
“estamos no paraíso” e que não há déficit na Previdência. “Não é o paraíso, mas
também não é o apocalipse”.
Para a
socióloga, a proposta de Reforma da Previdência fundamenta-se em pressupostos
altamente controversos, que longe de esclarecer a população, a confunde.
“Anunciam um caos que certamente não acontecerá. Se ocorrer, será produzido
pelo próprio governo: a terceirização já anula em grande parte, a possibilidade
de a Previdência se estabelecer”. A socióloga também questiona o discurso do
governo de que os gastos com a Previdência, que correspondem a 7,5% do PIB, são
os de maior índice no Brasil. “Não são. O maior índice é o do pagamento de
juros da dívida e as amortizações. E 7,5% do PIB não é uma taxa elevada. Se
quisermos nos igualar aos países desenvolvidos, como frisa o governo, os gastos
podem chegar a 14% do PIB”.
O
envelhecimento torna-se motivo para dificultar o acesso à Seguridade Social e
reduzir o benefício. Trata-se de uma punição pela sobrevida, aos que cometeram
o crime de sobreviver para além dos 65 anos
Maria
Lúcia destaca também o fato de toda a exposição de motivos da Reforma da
Previdência ser calcada na questão demográfica, que é tomada como uma catástrofe,
uma ameaça. “A longevidade da população é tratada como sobrevida. O
envelhecimento torna-se motivo para dificultar o acesso à Seguridade Social e
reduzir o benefício. Trata-se de uma punição pela sobrevida, aos que cometeram
o crime de sobreviver para além dos 65 anos. Esses impactos sobre a Previdência
não são diretos nem incontroláveis. São filtradas pela adesão ao sistema, pelo
valor do salário”.
Maria
Lúcia explica que, para sustentar o discurso do rombo da Previdência, o governo
omitiu uma série de receitas que, se fossem consideradas, aumentariam a
arrecadação. “Primeiro, só se computam os valores de empregados e empregadores,
deixando de mencionar todas as outras fontes de receitas estabelecidas pela
Constituição”, diz. “Segundo, não se faz referência ao montante retirado pela
DRU [Desvinculação de Receitas da União]. Em 2014, a DRU retirou R$ 63 bilhões
da Seguridade”. A socióloga aponta que o governo também desconsidera as
desonerações de impostos, contribuições sociais e folhas de pagamento das
empresas. “Essas desonerações operam como redutoras das receitas da seguridade
em geral e da Previdência em particular. Em 2015, o volume de desonerações
totalizou R$ 280 bilhões. No que tange especificamente à Seguridade, foram
surrupiados R$ 157 bilhões do orçamento”.
Também
não são levadas em conta, observa Maria Lúcia, as formas de sonegação por parte
das empresas de contribuições previdenciárias. “Estas se manifestam de várias
maneiras: pagamento por fora do salário registrado na carteira de trabalho,
contratações sem registro, sonegação de informações sobre acidentes de
trabalho, entre outras”. Ela aponta, ainda, que o governo também faz “tábula
rasa”, ao tratar do regime geral da Previdência – que é universal, ainda que
atenda fundamentalmente os trabalhadores da iniciativa privada – e dos chamados
regimes próprios – que contemplam servidores públicos, civis e militares, da
União, Estados e municípios.
Pode-se
pensar, por exemplo, em reformas que visem ampliar a cobertura previdenciária,
como ocorreu no Brasil em relação aos empregados domésticos, na forma de
contribuição do empregador
A
socióloga defende a existência de outras possibilidades de reforma para a
Previdência, orientadas para a inclusão social. “Pode-se pensar, por exemplo,
em reformas que visem ampliar a cobertura previdenciária, como ocorreu no
Brasil em relação aos empregados domésticos, na forma de contribuição do
empregador”, diz. “Também podemos pensar em reformas que reduzam a desigualdade
no acesso aos benefícios, como foi o caso da regulamentação da concessão da
aposentaria para o segurado especial, erroneamente, chamada de aposentadoria
rural”, diz. “Só não se pode propor, como no caso atual, reformas que excluam
particularmente os segmentos mais vulneráveis da população da proteção
previdenciária”.
Para
Maria Lúcia, está ocorrendo uma ampla intensificação da propaganda contrária ao
sistema de proteção social estabelecido pela Constituição de 1988. “O que se
propaga é essa ideia de que tudo o que vem do Estado é insuficiente, e que o
mercado é que funciona. As pessoas são massacradas com ideias que têm a ver com
ascensão individual”, diz. “As mudanças diárias na posição do governo, a
quantidade já bastante grande de emendas ao projeto que tem sido anunciada e a
postergação da leitura do parecer do relator da Câmara dificultam previsões
quanto ao resultado do embate, mas reforçam a ilusão de que está acontecendo um
amplo debate na sociedade. Não está, é ilusão. Nesses debates anunciados nos
jornais só participam especialistas adeptos, senão coautores, da proposta do
governo”, diz a socióloga, alertando que a argumentação propagandeada tem a
aparência muito consistente, porque é construída sobre números. “E números,
indiscutivelmente, não mentem. Assim, eles convencem mentes e corações que
estão diariamente expostos aos noticiários da TV e do rádio. Contudo, se
números não mentem, eles também não falam. Quem fala são as pessoas, que
dominam os números e os utilizam para legitimar seus argumentos”.
Maria
Lúcia defende a ampliação do debate “para além do maniqueísmo entre um futuro
apocalíptico e um possível paraíso”, propondo que se discuta mais. “Não temos a
chave do paraíso. O Brasil é profundamente desigual, do ponto de vista
regional, de renda. Não vamos acabar com a dívida, que existe em vários países
também. Pode-se optar por aumentar a dívida e aumentar o bem estar. São
negociações.”
(Por: Luiza Medeiros/CEE-Fiocruz)
extraido de http://cee.fiocruz.br/?q=node/547